sábado, 7 de julho de 2012

O Troco


Não sei exatamente o que define a loucura, mas posso afirmar com certeza: nem todo mundo que é louco parece ser louco. E minha irmã é uma dessas pessoas.
Quem a conhece de perto logo vê que ela é um ponto fora da curva, mas poucos, quase ninguém, tem noção do quão louca ela pode ser a depender do "estalo". Quando algo a aflige e ela fica meio sem saída, ela simplesmente se transforma em outra pessoa, do tipo criativa, surpreendente e às vezes perde a noção do perigo...
De longe ela é bem normal. E esse é o problema, e também a solução para os seus problemas. Agente simplesmente esquece que ela pode vir a ser muito louca.
Tempos atrás tive um contratempo de difícil solução. Não porque a solução não existia, mas porque ela era demorada, desgastante e delicada. Ela dependia do bom senso e do caráter de terceiros.
Há alguns meses atrás a garota com quem dividia o apê simplesmente foi embora, sem aviso prévio, e deixando pra trás um mês de aluguel, um chuveiro quebrado e uma parede suja.
Minha mãe me ajudava com o aluguel, pois meu salário de balconista não dava para todas as contas. No entanto nós sabíamos que esta contribuição era suada e implicava em grandes privações para ela. Decidi então não pedir o dinheiro que faltava pro aluguel a ela.
Pensei em pedir à minha irmã. Ela com certeza me daria, e este é o problema: não seria um empréstimo e sim uma doação. Meu orgulho não deixou.
Resolvi então raspar minhas economias. Eu me apertaria por um ou dois meses e enquanto isso tentava receber o que me era devido. Era só uma questão de tempo para que a garota que morava comigo conseguir a grana com seu pai e tudo estaria resolvido.
Dois meses se passaram e nada da garota me pagar. Eu estava sendo paciente, mas as férias acabaram e início de aulas significa gastos extras com material, aumento de aluguel e sorte para encontrar outra pessoa para rachar as contas comigo.
Comecei a ficar nervosa com os dias que se seguiam. Ninguém queria dividir o apê comigo, pois era o meu último ano de faculdade. A garota já não atendia mais o telefone e seu pai disse que simplesmente não ia pagar porque não tínhamos nenhum contrato dizendo que ao sair do apartamento no meio do mês sua filha tinha que pagar pelo mês inteiro. Tá, mas ela também não tinha pago pelos 15 dias.
Tentei negociar, cobrar somente pelos dias em que ela ficou, mas foi tudo em vão. Resultado, entrei no cheque especial e tive que abrir o jogo com minha mãe e minha irmã.
Ambas se prontificaram a me ajudar, com uma pequena contradição: minha mãe, assim como eu, achava que independente de a grana fazer falta ou não, a garota tinha que pagar o que devia. Ela tentou falar com o pai da garota, explicar a nossa condição, a falta que a grana nos fazia, mas de nada adiantou.
Já minha irmã, que foi quem cobriu o meu cheque especial e ainda me deixou um extra, achava que era melhor deixar isso pra lá e não se estressar mais com isso, afinal o problema já estava resolvido e, como ela adora repetir: o dinheiro deve trazer bem estar e não o contrário. Se você tem o suficiente, não deve criar briga por ele e muito menos por pessoas que usam ele mal.
Ela estava certa, embora pensar assim naquele momento não fosse uma tarefa fácil e nem me parecesse justo.
Mesmo com o extra e o cheque especial coberto, eu continuei a minha saga, tentando fazer o que era justo, enquanto a minha irmã, só para me irritar mais, insistia em dizer que eu estava me estressando à toa e que não era mais uma questão de justiça e sim de orgulho, pois a dívida já estava paga.
Mas para mim ainda não...
Se passaram mais uns 40 dias nessa batalha, até que após discutir com minha irmã ela me perguntou: Isso é realmente importante para você? Eu respondi afirmativamente e quando ia argumentar sobre o porquê, ela me interrompeu e disse:
- Então deixa comigo que eu resolvo isso de vez!
- E vai fazer o quê? Eu já tentei negociar, mamãe também. Não adianta, vou ter que contratar um advogado.
- Calma, deixa o advogado de fora. Eu não vou negociar... Você confia em mim?
- Confio.
- Então pronto.
Confesso que disse confiar com um certo frio na barriga. Conheço bem minha irmã e sei bem do que ela é capaz por nós, mas não a conheço o suficiente para saber do que ela não seria capaz por nós.
Cerca de umas duas três horas depois ela me ligou e disse:
- O pai da garota pagou. Deposito a grana na sua conta amanhã. Agora vê se esquece esse povo. Isso não é gente pra você andar.
Juro, fiquei muda do outro lado da linha. Eu estava nessa tensão há quase 4 meses, e em menos de 3 horas minha irmã resolveu tudo. Como? Quer dizer, como ela conseguiu essa proeza? Foi o que depois de alguns minutos eu consegui dizer.
E ela, laconicamente respondeu: Só pessoalmente.
Não dava pra acreditar que além de tudo ela me deixaria nessa curiosidade. Era uma quarta-feira. Sexta à noite eu estava na casa de minha mãe para ouvirmos da boca de minha irmã o que aconteceu naquelas quase três horas.
- Vai, conta logo! O que você fez para eles te pagarem?
E minha irmã calmamente disse:
- Eu vou contar, mas se alguém me criticar ou repreender, nunca mais contem comigo. (Ela era uma pessoa de palavra).
Assentimos com a cabeça e ela continuou.

-Bom, depois que eu falei contigo no telefone tive uma idéia. então peguei o carro e fui até o consultório do pai da garota e pedi pra falar com ele. Disse que era urgente e que precisava ser em particular.
A secretária dele não me conhecia e me levou para a sala dele enquanto o chamava. Dei um nome fictício para ele não desconfiar.
Quando ele entrou na sala e me viu, entendeu tudo e foi logo dizendo:
- Eu já falei o que tinha que falar com sua mãe e sua irmã. Eu não tenho tempo para  perder com isso. Minha filha fez a dívida, ela se responsabiliza. Eu não vou pagar nada.
Caro que se ele não o faria, ela menos ainda, pois a garota além de não trabalhar recebia mesada dele.
Perguntei a ele se essa era sua decisão final, se não queria repensar. Mas ele me respondeu claramente que não ia mudar de decisão.
Levantei-me dando um adeus, passei pela recepção acompanhada por ele, parei na porta e o vi cochichar algo com a secretária. A sala estava vazia.
Fui até o carro, peguei o brinquedinho do pai, que havia levado comigo e voltei para tentar negociar com a secretária, que é quem cuida do dinheiro das consultas. Cheguei perto dela e disse:
- Luciene, o doutor mandou eu pegar contigo quinhentos e dois reais e trinta e set centavos que a filha dele estava devendo pra minha irmã. Está aqui o envelope. Ah, e se puder ser em dinheiro e não em cheque eu agradeço.
Ela olhou pra minha cara, desconfiada, e disse: Ele não me disse nada, eu não poderei fazer o pagamento. Tenho que pedir autorização a ele.
- Ué, mas eu vi ele falando contigo quando saí. Você não deve ter ouvido direito, pois foi isso que eu combinei com ele. Pode me pagar que está tudo certo.
- Senhora, o que ele me disse foi que se a você aparecesse de novo que não era para chamá-lo. Você não é bem vinda neste consultório. Por favor, queira se retirar.
- Não quero me retirar não, sabe porquê? Por que neste exato momento decidi cobrar esta dívida com juros.
Peguei o brinquedinho do pai na bolsa e encostei na testa dela.
- Passa todas as notas altas que vc tiver aí ou eu atiro. Nada de cheque, só grana. Notas de cinquenta e de cem. Anda!
Ela ficou branca e desandou a chorar. Tremia que nem vara verde.
- Passa essa nota de 5 aí tb, vai, uma só. Essa que tá aí em cima.
Peguei a grana e voltei rapidão pro carro. Separei os quinhentos reais entre as notas de cem, botei o resto no envelope. Saí devagar com o carro e vi um moleque passando do outro lado da calçada. Chamei ele e perguntei se ele tava afim de ganhar dois reais para entregar um envelope com uns exames no consultório.
Ele disse que sim e correu até lá.
Continuei devagar com o carro até a esquina para ver se o moleque tinha feito tudo certinho. Vi o pai da garota sair na calçada e passei cruzando a rua. Dei uma buzinadinha e gritei: Tá aí o troco!
E pronto, foi assim que eu resolvi tudo, terminou a minha irmã, com a mesma calma que começou a contar a história.

Cara, eu fiquei arrepiada com o que ouvi. Nem sabia o que dizer. E se eles chamassem a polícia?
Mas minha irmã não pensou em nada disso quando fez aquela loucura. E por mais que argumentássemos sobre os riscos de sua atitude e as consequências, ela simplesmente sorria satisfeita e dizia:
- Ah! Deixa isso pra lá gente. Agora não há mais dívida.


Por Elita de Abreu, em 15/05/2012.