Ensaio II: O caso das duas Maçãs.


A criança chega com duas maçãs nas mãos e oferece uma delas à mãe.
A mãe a rejeita, agradecendo.
Após a primeira mordida, a mãe pede uma mordida também.
Antes de lhe entregar a maçã para que esta a mordesse, a criança oferece-lhe novamente a outra maçã que ficou intacta.
A mãe novamente a rejeita e diz que quer apenas um pedacinho para experimentar e morde a maçã da criança.
Algumas mordidas depois a mãe pede novamente mais um pedaço, sob a alegação de que a maçã está gostosa.
Mais uma vez a criança pergunta: Tem certeza que não quer uma só para você?
A mãe dá a mordida e diz que não.
No terceiro pedido, a criança dá todo o resto da maçã que estava comendo para a mãe e pega a outra para comer.
A mãe fica irritada com o comportamento da criança e a repreende: Nossa como você é egoísta, eu só quero um pedacinho. Você tem que aprender a dividir!


Neste caso, que vive acontecendo comigo desde criança, há alguns aspectos importantes, no meu ponto de vista, a serem analisados e questionados.

A criança ainda não tem maturidade o suficiente para entender que ela, de forma alguma está sendo egoísta, uma vez que ela estava disposta a ceder uma maçã inteira para mãe, que ela não se negou a deixar com que a mãe mordesse a sua maçã e que, percebendo que a mãe queria a sua maçã, deixou esta com a mãe e ficou com a outra. Por isso, a repreensão da mãe lhe causa sentimento de culpa.
Por outro lado, a mãe não consegue perceber isso porque o seu desejo por aquela maçã específica está falando mais alto, a inveja dominou a sua lógica em perceber que a criança sempre esteve disposta a lhe dar aquela maçã. A mãe não consegue perceber que neste momento a egoísta é ela própria.
Além disso, sem perceber, ao repreender a criança desta forma ela pode estar vir a moldar um caráter submisso, condescendente, onde a criança, futuro adulto, acredita que tem que abrir mão daquilo que quer, que possui, em detrimento do outro, independente da obviedade de que o outro o poderia ter ou possuir o mesmo sem tirar-lhe aquilo que é seu. Mais do que isso, fica o mau exemplo de que a própria criança o poderia fazê-lo, já que ela vira a mãe apoderar-se do que era seu e justificar o seu ato através da indução sentimento de culpa no outro.

E no meio desses dois sentimentos vem o desejo (sempre ele) que se impõe em detrimento do outro, da lógica e da ética. O desejo que em momento algum foi questionado.
Primeiramente, vamos questionar, "hipotetizar" os motivos que levaram  esse caso corriqueiro a esse desfecho e os seus desdobramentos. Motivos estes que tem, como pano de fundo o desejo pessoal.
1)Pode ser que a mãe simplesmente não quisesse uma maçã inteira. O que de forma alguma obriga a criança a dividir a dela, já que há uma sobrando, mas é uma motivação válida.
2) Da mesma forma, pode ser que a criança quisesse uma maçã inteira e não parte dela. O que é justo, já que há duas maçãs.
3) Ou pode ser que a mãe simplesmente quisesse a maçã que estava nas mãos da criança, mas não admitiu isso para si mesma, e numa forma de repreender a si mesma mesma pelo seu desejo ao que é do outro, mas que ela julga estar errado, ela repreende a criança quase que como uma auto-repreensão. É como se a criança tivesse a obrigação de dividir com ela, para que ela se sentisse menos culpada em desejar algo de outrem.
4) Ou ainda, a mãe realmente não queria a maçã e depois mudou de ideia, se satisfazendo, no entanto, com apenas algumas mordidas, sem acreditar que poderia estar causando qualquer tipo de perda à criança.
5) E por fim, a última hipótese que me vem à cabeça (acredito que há mais, mas só consegui imaginar estas) a criança queria satisfazer a mãe acima de seus desejos, por isso pega uma maçã para a mãe e depois cede a sua própria maçã para a mãe.

Como podemos ver, as motivações, implicações e desdobramentos de uma simples cena podem ser muitas. Mas independente das muitas variáveis e múltiplas respostas, questionar será sempre um bom exercício.
Pensar, imaginar e hipotetizar nos levam a outras possibilidades de construção e desconstrução do ser.
Infelizmente, esse exercício só pode ser feito depois do ato já consumado, e não há como prever os desdobramentos. Mas felizmente, podemos, ainda que tarde, refletir sobre eles e tentar entender certos padrões de comportamento, mesmo que venhamos a repeti-los.

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