Ensaio IV: O Dilema da Gaiola

Este é um ensaio sobre o que eu penso a respeito de liberdade e será escrito de forma alegórica, tipo parábola, pois foi a forma que melhor encontrei para expressar essa idéia.


Olegário é um sujeito pacato, que leva a sua vidinha como a maioria das pessoas. Tem sonhos, desejos, culpas, fragilidades, enfim um ser humano que, apesar das suas peculiaridades (que o torna único) é como qualquer outro. Vejam que paradoxo, Olegário é como qualquer outro, mas ao mesmo tempo único. Sim, somos esse paradoxo mesmo. É a famosa e complicada ambivalência do ser: nem bom nem mal, os dois!
Desde a infância Olegário sempre gostou de pássaros. Ia para o parque observá-los, fazia armadilhas para capturá-los, pegá-los em suas mãos, acariciar a cabeçinha e em seguida os soltava. Mais adolescente, passou a fotografá-los. Gostava de ver a diversidade das penas, tamanhos, cores, forma do bico, rituais de acasalamento, como faziam o seu ninho, alimentavam seus filhos, ouvir o seu canto. Chegou a gravar o canto de alguns, os seus preferidos, para ouvir em casa, pois Olegário sempre dizia que gostava de vê-los livre na natureza.
Mas Olegário cresceu, e foi sucumbido pela vida. Sem tempo para apreciar os pássaros, ou melhor, mudando a sua prioridade para algo que não os pássaros, Olegário passou a ser um ser comum. Deixara pra trás tudo aquilo que o fazia feliz para buscar algo que ele achava que iria fazê-lo feliz.
Esqueceu-se do sorriso em seu rosto quando reconhecia o canto de um pássaro, da emoção de ver pai e mãe se revezando para alimentar os filhotes, da tristeza ao descobrir que um gato atacou o ninho, da alegria em ver uma espécie nova e de tardes inteiras em contato com a natureza só apreciando a beleza desta.
Agora Olegário tinha que trabalhar, não tinha mais tempo para essas "bobagens", como ele mesmo andava dizendo quando alguém lhe perguntava sobre seus pássaros. Mas porque Olegário tinha que trabalhar tanto a ponto de abandonar algo que gostava tanto
Oras, muito simples, porque Olegário também queria ter um carro, uma casa, um apartamento na praia, viajar pelo mundo, frequentar lugares badalados, conhecer gente bonita, importante, influente. Olegário queria ser um homem de sucesso!
E assim se foram os breves 15 anos na vida de Olegário.
E chegados os seus 35, deprimido, Olegário passou a reavaliar a sua vida quando num casamento de um amigo. Olegário era livre, se dizia solteirão convicto, mas se sentia sozinho, prisioneiro de sí mesmo, por não conseguir dividir com ninguém mais aquilo que tomara pra sí e chama de "minha vida". E ao ver a sua namoradinha de infância, com o filho no colo, Olegário sentiu algo inusitado.
Não, definitivamente ele não queria aquela vida, nem a que estava vivendo e nem a que via na moça agora crescida.
E imerso nesse pensamento os dias se passam até que um dia, deitado em sua cama, difuso em seus anseios, um pássaro pousa em sua janela. Olegário olha para ele, observa seus movimentos, e tem a impressão de que este quer se comunicar, quer lhe dizer algo. Então ele se aproxima bem devagar, como fazia quando criança, para não assustar o pássaro. Chega bem pertinho, cada vez mais e mais, até pegar o bichinho em suas mãos. Assustado o passarinho dá um pio e Olegário o solta imediatamente.
Era um Bem Te Vi. Lindo, de corpo amarelinho. E Olegário voltou a se sentir menino. Mas Olegário agora tinha crescido, como podia voltar a ser um menino. Não podia, ele sabia! E Olegário ficou ainda mais triste.
No dia seguinte, cansado da jornada de trabalho, senta-se na cama olhando a para a janela, buscando enxergar a solução para sua angústia, quando avista novamente o Bem Te Vi a rondar.
Olegário corre a buscar migalhas de pão para colocar no batente.
O Bem Te Vi pousa, come as migalhas e vai-se embora.
Olegário sente-se feliz!
Então Olegário tem uma idéia, colocar comida e água em sua janela todo dia, assim o Bem Te Vi sempre viria. Dito e feito!
Olegário estava feliz, conversava com o passarinho, que segundo ele o entendia perfeitamente e até a cabeça mexia quando concordava com o que dizia. Fotografou-o com o celular para mostrar aos colegas do trabalho, que não deram a mínima. Mas Olegário nem se importou, e por que deveria...
Mas passados alguns dias de euforia, o Bem Te Vi não mais voltaria.
Sim, ele sabia. Estava alí por causa de sua ninhada. Uma vez que os filhotes pudesse bater as asas o Bem Te Vi sumiria.
Então Olegário decidiu que uma gaiola iria comprar.
No dia seguinte, montou uma de suas armadilhas e zapt! Agora o Bem Te Vi morava na sua lavanderia.
Olegário tentava se convencer de que era melhor para o bichinho. Não mais predadores, nem competição por comida. Não mais rejeição ou fêmea aborrecida. Não mais vôos longos, nem tempestades repentinas. agora o Bem Te Vi teria uma vida tranquila, sempre teria comida, água e companhia. E felizes, Olegário e o pássaro viveriam.
Como era de se esperar, não foi bem isso o que aconteceu...
Todas vez que Olegário tinha que viajar, Olegário num dilema se via. Quem iria cuidar do pássaro, quem o alimentaria, quem sua gaiola limparia...
O Bem Te Vi nunca aparentou, segundo Olegário, estar incomodado com a nova "casa", porém Olegário começava a sentir numa prisão.
Feriado na praia, não podia, o pássaro não sobreviveria.
Esqueceu de dar comida, o pássaro enfraquecia.
Não trocava a água, o pássaro adoecia.
Não conversava com o bichinho, ele entristecia.
E Olegário, o homem que livre se dizia, toranara-se prisioneiro fora da gaiola. Como podia
Olegário não entendia, foi ao pássaro que ele prendera, mas ambos tinham perdido a liberdade, o pássaro porque da gaiola nunca mais sairia e Olegário porque dele agora o pássaro dependia.
Encontrando-se num dilema, Olegário teria que decidir,  perder o pássaro  que tanto amava em troca de sua própria alforria, ou continuar a possuí-lo e permanecer amarrado à aquela parceria.
Olegário foi empurrando com a barriga, na esperança de que uma solução mágica aparecesse, até que um dia, desesperado com aquela algema que se fazia sentir cada vez mais apertada, Olegário, sentado em sua cama, tomava a decisão mais importante de sua vida.
Ele olhou para a janela e novamente buscou a sua infância. Lembrou-se da primeira vez que o Bem Te Vi surgiu e da surpresa boa que era a sua aparição a cada dia. Lembrou de que algumas vezes o pássaro não veio, e outras ele mesmo é que desaparecia, e que independente disso o encontro dos dois era sempre uma alegria.
Olegário lembrou-se da conversa que teve no casamento, com a ex-namoradinha de infância, e que esta mal pode curtir a festa porque precisava cuidar do bebe, que sem ela não sobreviveria, e lembrou-se que não queria esta vida para sí.
E em meio a estas lembranças Olegário se perguntou: como alguém pode ser realmente livre possuindo algo, algo que depende de você, que toma o seu tempo, que requer a sua atenção todos os dias Como alguém pode ser livre quando algo além de você se torna importante e você tem medo de perder Como alguém pode ser livre sem correr o risco de perder, de se perder como alguém pode ser livre através da posse.
Sim Olegário esta é mais uma antagonia. É a crença falsa de que se pode ter liberdade. Ninguém tem liberdade, liberdade não se compra. Você só pode ser livre.
E Olegário entendeu que no momento em que comprou a gaiola com o objetivo de aprisionar o passarinho, também se tornou um prisioneiro, um prisioneiro de sua própria prisão, de seu medo, de sua solidão, da dependência que ele mesmo criou para o outro.
Decidido e convencido, Olegário pega a gaiola, leva até a janela e abre a porta, o Bem Te Vi sem entender nada, fica acuado.
Olegário se desespera: Vai, você está livre, voa!
Mas o Bem Te Vi nem se move...
E Olegário percebe que o bichinho gosta mesmo dele, e que ele está sendo cruel com ele, pois em momento algum ele perguntou se o bichinho queria ser um prisioneiro. Ele decidiu isso sozinho e fez daquele um lar maravilhoso para se livrar do sentimento de culpa por ter tirado a liberdade do passarinho. E agora, da mesma forma, ele o expulsava novamente de seu lar. novamente sim, porque antes de aprisiona-lo, o Bem Te Vi também tinha um lar.
Sem esperanças e se sentido o pior dos seres humanos, o mais cruel dentre eles, Olegário deixa a Gaiola em cima da Janela, deita-se na cama choroso e adormece.
No dia seguinte, quando acorda vê o Bem Te Vi do lado de fora da gaiola olhando pra ele.
Ele se aproxima, mas o Bem Te Vi sai voando...
... e volta no dia seguinte para pegar comida.
E assim, ambos novamente livres, os dois convivem alegremente com a insegurança de nunca mais se verem a cada dia e com a certeza de que a obrigação de se verem todo dia os mataria.
 

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